“E Se?”

Cada vez mais tenho me convencido de que o questionamento mais prejudicial que se pode fazer a si próprio nessa vida é o famigerado “E se?”.

 

O “E se?” sempre te transporta pros 2 tempos em que não deves estar. Especialmente o passado, porque te faz pensar em como algo teria sido diante de uma mudança de rota lá atrás. Além disso, em consequência – e com um certo requinte de crueldade – te faz olhar pra um futuro ilusório, uma projeção que não existe e provavelmente não terá chance de existir.

 

Não sei se é coisa de quem chega na metade da vida, mais ou menos na casa dos 30 pros 40, e começa a pensar na jornada que já fez, mas o que posso garantir é que, nessa altura, os “E se?” já são muito numerosos.

 

– “E se?” meus pais não tivessem se separado quando eu e meus irmãos éramos crianças/adolescentes? Seríamos nós, hoje, uma família daquelas em que os filhos crescem próximos, constituem família e fazem programas de “grande família” aos finais de semana, levando os netos pra visitarem os vovós? Daquelas que pedem uma pizza no sábado à noite e fazem um balanço da semana brincando e se alfinetando de uma maneira em que tudo termina em risadas e bons momentos? Teríamos nós, eu e meus irmãos uma melhor estrutura emocional a ponto de nos tornarmos mais resistentes aos males contemporâneos da ansiedade, da angústia, da depressão?

 

– “E se?” eu tivesse ido para aqueeela grande oportunidade de estágio de vivência do mestrado, na França? Teria com isso topado ir para o final da fila no Concurso Público em que havia sido aprovado e para o qual, naquele mesmo momento da vida, eu aguardava convocação? Não teria medo de voltar ao Brasil e não ter emprego? Aceitaria resignado ser mais um dos muitos que dependem de serem “enxergados” nesse mar de desordem e desemprego que assola tanta gente boa e capaz por aí no nosso País? E se ter viajado pra estudar na França com a equipe do prof. Pierre e dispensado a convocação do Concurso fosse uma baita bola fora? (já que pro senso geral, passar num Concurso na sua área é encaminhar-se na vida… inocentes, não sabem de nada…). Eu faria questão? Estaria me lamentando pelo erro de timing? Ou voltaria da França tão empolgado e confiante a ponto de vir ao Brasil “só pra fazer as malas” e ir embora de vez? Seria PhD hoje em dia? Ou seria só mais um dos bons cérebros que são infelizmente obrigados a resumirem sua vida e a de sua família a “viver de bolsa”? (estes cada vez mais na corda bamba hoje, registre-se…). Não teria realizado tudo que profissionalmente acho que realizei e realizo por aqui? E o senso de satisfação profissional? Estaria em dia? Ou esse senso estaria péssimo incomodando a ponto de me fazer sentir que fui uma pessoa que ‘deu errado’ na vida?

 

– “E se?” eu não tivesse abandonado o Esporte? Estaria hoje forte o suficiente pra realizar os sonhos esportivos da minha vida, como correr a Western States 100, viajar com a namorada (qual delas teria permanecido comigo?) para correr a lindeza da Two Oceans na África do Sul, ou mesmo a famosa Comrades? Estaria pronto pro grande sonho dos sonhos, que era fazer a Spartathlon na Grécia? Teria eu ido longe o suficiente? Haveria uma vida mais incrível do que sentar-se 10 a 12 horas por dia na frente de um computador, comendo mal, desregulado, consumido por uma burocracia irracional e achando ingenuamente que estou melhorando o mundo e a situação das pessoas através da instituição pela qual mato e morro defendendo, só porque atendi “n” processos e respondi “x” e-mails? Sério, man?

 

– “E se?” eu tivesse agido corretamente com as pessoas que me amaram? Estaria hoje feliz? Estaria hoje as fazendo felizes? Teria menos fantasmas ao redor? Sentiria menos o silencioso mas devastador impacto das dívidas emocionais com as pessoas que decepcionei?

 

– “E se?”, ignorando o desejo de crescer profissionalmente, eu não tivesse aceitado aquela proposta de ascensão de carreira, que me levou a chefiar gente com o dobro da minha idade, e o triplo do tempo de Casa, mas cujas responsabilidades que assumi me consumiram os dias por completo, de 8h às 23h, durante longos anos? Teria dado mais atenção à família, amigos, amor, e talvez até estaria com uma família estruturada? Estaria suficientemente feliz no campo pessoal a ponto de não me importar em ter estagnado profissionalmente por não ter aceitado aquela oportunidade? Estaria eu feliz no geral, ou igualmente lamentando ter me dedicado demais aos outros, em anulação ao que eu queria profissionalmente, e ignorando uma carreira que tinha tudo pra dar certo? E se mesmo tendo aceitado a proposta de carreira, tivesse a estrutura emocional e a disciplina que filhos provenientes de uma família estruturada – aquela que come pizza e ri juntos no sábado à noite – tendem a ter, teria eu sabido dosar melhor o tempo e não perdido tanta gente importante no convívio próximo? Aliás, quem garante que aquela família estruturada poderia realmente ter existido? E com quais consequências poderíamos, eu e meus irmãos, termos nos deparado se não tivéssemos encontrado nossas próprias forças interiores pra não sucumbir diante de momentos tão duros de desestrutura familiar e desamor com crianças e adolescentes ainda em formação, que ainda tentavam se situar no mundo?

 

A lista de questionamentos pode ser infinita. Mas o invariável de todas essas dúvidas é que elas nascem da mesma famigerada raiz: o “E se?”.

 

"Questão de Tempo", ótimo filme de 2013. E olha lá o questionamento na chamada...


Quando me proponho esse exercício inglório do “E Se?”, é interessante notar que os eventos – bons e maus – ao longo da vida vão se entrecruzando na cabeça. As possibilidades de associação entre grandes momentos decisivos na vida e como eles influíram pra que sejamos o que somos hoje são simplesmente infinitas. Pra não deixar a coisa complexa demais, nem me atrevo a entrar no campo das decisões menores (como fazer uma determinada amizade, ou ingressar num determinado círculo social, como um grupo de estudos ou de esportes)… Fico apenas na “ponta do iceberg” das grandes decisões: a escolha da área de estudos, a decisão de constituir uma família, a decisão de emancipar-se, uma mudança de casa e de bairro, um “decidir ir viver junto”, o aceite de uma proposta profissional... Enfim, só voltar nesses pontos de bifurcação principais da vida já levam a gente a um sem-fim de cenários possíveis. E de “eus” possíveis hoje em dia.

 

E talvez seja essa infinidade de combinações que perturba, incomoda, atrapalha o momento presente. Ela te tira do agora, e te joga pro “lá pra trás”. No final, sempre te faz chegar nos mesmos pontos: “não devia ter ido por ali”, “devia ter aceitado outra coisa”, “tava na cara que aquele caminho ia dar m…!”.

 

É de lascar. E é por causa desse tipo de sentimento que o início dessa conversa traz a convicção pessoal de que “o questionamento mais prejudicial que se pode fazer é: ‘E se?’”. É uma espécie de ‘atentado duplamente qualificado’, porque é como se chegasse a atacar a saúde nas dimensões mental e espiritual. Na verdade, acho que efetivamente faz isso.

 

Aliás, os orientais (obviamente) já haviam pensado nisso milhares de anos antes de hoje e por isso mesmo ao longo dos tempos e dos sofrimentos (porque tenho certeza que aprender doi! tanto aqui quanto lá!) entenderam que o único tempo em que se pode viver é o “agora”, e que isso não significa necessariamente ignorar o “ontem”, nem desconsiderar o “amanhã” (afinal, planejamentos estão aí…), mas é sobre estar presente, estar atento, viver o momento presente. Hoje em dia, com nosso mundo nessa constante “Revolução Informacional” isso é até mais agudo: não se permitir viver no piloto automático levado pelo mundaréu de notícias, estar no controle das decisões pessoais, auto-analisar os momentos e a própria conduta; não ser refém da caixa de e-mails, sempre cheia de mensagens não lidas, e lembrar que há um mundo “passando” lá fora enquanto nos enfurnamos na tela de um computador ou de um celular durante o-dia-que-Deus-dá, todinho; ser capaz de perceber as situações nas quais está inserido e olhar no formato que os americanos gostam de chamar de bigger picture, ver a coisa panoramicamente, para fora da redoma em que se está dia após dia. Estar esperto, vívido.

 

Como ultimamente tenho recuperado um hábito de prestigiar a Sétima Arte, a última série que mais me marcou sobre o poder perturbador do “E se?” foi a catalã “Si No T’Hagués Conegut” (título no Brasil: Se Eu Não Tivesse Te Conhecido). Falar dela me motiva a dar spoiler e isso não vai acontecer, prometo. Mas é incrível pensar como a possibilidade de caminhos é infinita a depender das escolhas que fazemos. E que, no final das contas, não somos capazes de moldar todas as grandes decisões de modo que elas produzam um futuro ideal. Algo sempre vai desandar…

 

"Se Eu Não Tivesse Te Conhecido" é uma das séries sensacionais de baixo orçamento e fora do mainstream das quais nós não ouvimos muito falar. Mas deveríamos.

Talvez o que me inquiete tanto – e paradoxalmente fascine – nesse tipo de assunto é que há muito anos atrás ‘trombei’ com uma coisinha chamada Teoria de Sistemas e descobri que eu queria adotar pra sempre o que ela traz. Não encontro forma mais fundamentada de compreensão do mundo do que a TS. E é possível degustá-la de tão diferentes formas que arrisco a dizer que ela poderia ser acessível a mais da metade das pessoas, mesmo as que tiveram menos oportunidades de acessar conhecimento formal. De assistir a “Efeito Borboleta” (aliás, um dos meus filmes prediletos), a ler A Teia da Vida, do físico austríaco Fritjof Capra. Há também 2 séries bem fora de radar que são excelentes pra mostrar como “as partes do todo se conectam” e como tudo está interrelacionado. Uma é mais antiga, dos anos 90, e o título no Brasil é “Edição de Amanhã”. A outra é mais contemporânea, e se chama “Touch”. Nesta, fica bem evidente que existem “padrões de encaixe”, que podem até ser matematicamente explicados.

 

Tento entender a Teoria de Sistemas fazendo analogia com uma árvore. Uma possibilidade única de tronco, mas incontável de número de grandes galhos, ramos, ramos ainda menores, e assim por diante.

A árvore representa cada um de nós;

O tronco é a nossa vida em si, único, o que nos “põe em pé”;

Os galhos maiores são as grandes decisões;

Os ramos são as menores decisões;

Os ramos ainda menores são as micro-decisões… E assim vai.


Por si só, essa compreensão já seria muito válida, pois guarda uma semelhança incrível com o Sistema Vivo ao redor, o ambiente, demonstrando que não somos outra coisa senão parte desse meio (ambiente), o que poderia ser chave pra revermos muito do que temos feito, individual e coletivamente (ok, ok, é assunto pra outro texto…).

 

Mas aí essa mesma compreensão vai além, e propõe entender o “Sistema Vivo” enquanto coletividade humana. Aquela árvore, já complexa em seus infinitos ramos não está sozinha no mundo… Ela é só um exemplar dentro de uma floresta, onde cada indivíduo está, em algum nível, conectado ao outro. Os troncos estão próximos e os galhos e ramos vão não apenas se tocar (e se entrelaçar, como uma grande teia), como também a posição de um pode influenciar decisivamente na existência, na direção e até na nutrição (ou na inanição) de cada outro indivíduo. No fim, todos os troncos, galhos e ramos estão, em diferentes graus, imbricados, com alguma espécie de interdependência do outro. Pode parecer confuso, eu sei… Difícil encaixar um jogo de palavras que explique isso com clareza. Mas é fascinante.


Ficamos de pé e, à medida em que vamos crescendo, vamos lá em cima nos entrelaçando uns aos outros, de modo que às vezes podemos ser comensais (nos ajudamos), mutuais (só vivemos bem se alguém também viver), ou mesmo competir pelo menos espaço/nutriente, muitas vezes atrapalhando ou sufocando uns aos outros. Não encontrarei uma melhor analogia pras relações humanas. 

Essa semana, um colega numa rádio, entre uma música e outra, disse algo mais ou menos como: “ignorância é uma dádiva, ter conhecimento sobre as coisas pesa, te deixa mal, te traz uma carga de impotência de não poder mudar o que estás vendo que tá indo mal… ser ignorante aumenta as chances de seres feliz”. Não lembro a fala na íntegra, mas a essência acho que dá pra entender. Bem, pensando por esse lado, talvez seja melhor que as pessoas realmente não acessem esse tipo de teoria. Talvez façamos mais bem a elas se elas não notarem que tudo se conecta, e que o passado “ecoa” hoje e todos os próximos dias. Deixá-las vivendo aleatoriamente, sem amarras mentais, sem “e se?”, e evitar que elas vivam frequentemente se questionando (e por vezes se lamentando) dos caminhos que, proposital ou desavisadamente, no modo “indo no fluxo”, acabam por tomar.

 

Todavia, somos inevitavelmente seres condicionados, históricos. Chegamos aqui onde estamos por todo um itinerário que cumprimos. Somos exatamente o acúmulo dessa trajetória. Nosso carro da vida não pára de andar pra frente e dobrar aqui, ali, acolá… às vezes cai num buraco, às vezes vai mais lento… Mas tá sempre indo pra frente, e dobrando aqui, ali, acolá… Isso não vai mudar. No fim das contas, talvez apenas tenhamos que ter a disposição de saber que esse percurso pode ter um motorista mais “presente”, mais vivo, sem mexer no celular ou conversar virando a cabeça pro lado, e a resignação de que esse carro é diferente: ele não tem a marcha-ré.

 

O “E se?” te faz inimigo de si.

--

W.A.

 

*P.S.: sobre tudo estar conectado, a última descoberta acerca foi “A Era dos Dados”. Ah, tem a alemã “Dark”, também. Ambas no Netflix.

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