Não se pode jogar pelo empate

Outro dia tive de ir à urgência da Unimed e, enquanto esperava para ser chamado à triagem, foi inevitável ouvir uma moça que conversava ao telefone a alguns metros de mim:

– “Égua mana, eu fico ‘cabreira’ né. Acho que eu não vou vacinar o fulano não. [deu a entender dps que se tratava de uma criança]. Sei lá né, a gente fica com medo, é tanto cientista dizendo que é pra vacinar mas também tantos aí dizendo que não, que não é seguro.

A mulher silencia por alguns instantes, como se estivesse ouvindo alguém interagir do lado de lá. Em seguida, continua:

– “Sim, a gente tá vendo todo dia as notícias. Mas tem cientista de renome também do outro lado. Tu viste que vacinaram uma criança em SP e ela teve parada cardíaca, diz que? Enfim mana, eu já não sei mais o que fazer olha, sinceramente”.


A mulher referia-se a uma movimentação da Deputada Federal C. Z., que “noticiou” que uma criança teria tido reação (parada cardíaca) à vacina para COVID-19 no município de Lençois Paulista – SP. A notícia se espalhou pela cidade a ponto de o prefeito ordenar a suspensão da vacinação ali. Dias depois constataram que a criança é portadora de uma doença congênita, e que, dessa forma, o episódio não teve relação com a vacina recebida. O próprio Ministério da Saúde se pronunciou a respeito disso.

 

Mas bem, o estrago já estava feito. Pouco importou se foi verdade ou não. A “notícia” dada pela Deputada causou o medo. O medo, por sua vez, causou a insegurança. E esta completou o ciclo, ao impedir a decisão de agir, nesse caso a decisão de os pais levarem seus filhos a vacinar. Provavelmente, a mulher ao telefone seguirá o mesmo caminho.


Depois de praticar o enxerimento de ficar ouvindo a conversa alheia – e de desejar que o Acaso seja bondoso com aquela mulher e sua criança – fiquei uns bons minutos refletindo, e aí então me arvorei a escrever essa rápida reflexão.

 

Nos últimos anos, dá pra constatar facilmente: o discurso negacionista quase sempre leva vantagem.

A Ciência, diferente de muitos canais, grupos e púlpitos não está a serviço de dizer aquilo que é mais confortável aos nossos ouvidos. Aliás, se estivesse, é mais provável que fosse Propaganda, em vez de Ciência. O falar da Ciência quase sempre é incômodo, e acaba apontando a necessidade de revisão de hábitos, individuais e coletivos. É sempre provável que resultados originados de estudos científicos te indicarão a necessidade de rever comportamentos, de repensar condutas, de mudar de rota. E, como já sabemos, o ser humano em geral não gosta disso.

 

Na Física, a 1ª Lei de Newton já nos lembrava que, na ausência de forças ou no equilíbrio de forças que se equivalham em intensidade e com sentidos opostos, os corpos tenderão à inércia, isto é, a ficarem como estão, no popular: “parados”. E é isso que acontece, por exemplo, quando o discurso negacionista confronta o discurso científico. Ambos vêm de sentidos opostos, mas se equivalem em força. Essa equivalência ocorre muito em função de que a estratégia negacionista pode até não ser a dita nos jornais e nas grandes mídias, mas é igualmente penetrante porque é muitíssimo habilidosa em dizer o que as pessoas gostariam que a realidade fosse, e não o que ela de fato é. Assim, consegue uma aderência incrível. Afinal, seria mais confortável pensar que “é só uma gripezinha”, ou que “a imunidade de rebanho já protege” e outras expressões que a própria Ciência já tratou de desmentir.

 

Resultado: pai e mãe desmotivados de levarem a criança à vacinação. Foi isso que aconteceu com a “moça da Unimed”. Ficará inerte. Na dúvida, não vai atirar. Com medo, escolherá a não-ação. E sequer podemos criticá-la, a culpa não está nela. Ela certamente não está agindo de má-fé, está imbuída de acertar e não quer o pior pra sua criança. Ela foi habilmente envolvida pela dúvida plantada por quem nega a realidade.

Para um país que há alguns anos vive a franca futebolização do debate político – e ainda não se convenceu de que isto é danoso em todos os aspectos – o estrago é ainda mais evidente. Toda a complexidade que algo pode ter se resume a uma linguagem binária. Zero ou um, branco ou preto, lado ou outro. Aliás, por falar em futebol, no Brasil atual só se pode chegar à conclusão de que quando o assunto é negacionismo, o empate favorece o adversário. Não importa se eles jogam “fora de casa”, o empate os favorece.

 

Diferente da Ciência, a negação não precisa do convencimento, basta que consiga causar confusão ou insegurança. Não precisa fazer o gol, basta não tomar. Numa sociedade com baixo senso crítico estimulado, o discurso de quem nega ganha adeptos também porque é mais fácil. Basta dizer: "questione, duvide, espere até ter certeza". Pronto, semente plantada. Mesmo quando as evidências estão lá, aos montes, como a que considero a mais emblemática e recente delas: a curva de mortes despencada, mesmo com a curva de casos aumentando a níveis de época de lockdown.

 

Ora, mas É CLARO que o "questione-duvide-espere-até-ter-certeza" é mais confortável na cabeça das pessoas, quase sempre um terreno onde o medo e a desconfiança encontraram boas condições de germinar no Brasil d’hoje.

 

Na precaução, o cidadão comum seguirá tendendo à inércia. E, uma vez que não dá pra culpá-lo por isso, nos resta batalhar, fazer o trabalho de formiguinha, apoiar a divulgação científica, da escola da sua criança até uma ocasião com o seu chefe. Não tem saída fácil: precisamos do gol, porque já sabemos que o 0x0 não serve.


Fora aqueles que pela sua má-fé têm como prazer ver mesmo o circo pegando fogo, é uma pena que o discurso da negação conecte bem na cabeça daqueles que na vida não puderam ter o privilégio de exercitar o pensar crítico e conhecer um tantinho do pensamento científico.

 

Constato que o mundo ficou esquisito porque aqueles que falavam e defendiam a Liberdade como valor, há séculos atrás, só libertaram e trouxeram evolução à sociedade em relação à “Idade das Trevas” justamente porque pactuaram esclarecer, jogar luz sobre os problemas, investigar, iluminar. Paradoxalmente, hoje os que dizem defender a liberdade são aqueles que mais sufocam o pensar científico, o lançamento de luz sobre algo, o que daria ao indivíduo a condição de escolher sem as amarras de uma força que fala em seu lugar. Um sintoma claro desse sufocamento está na perda de transparência pela qual passa grande parte das instituições públicas brasileiras, atualmente. E como sabemos, política pública sem dados é vôo cego.


Vivemos num mundo em que é quase impossível competir com aqueles que preferem dizer o que agrada, o que é conveniente, em vez do que a realidade, dura e sem conchavos, de fato grita.

 

Para que esta reflexão não seja só uma lamúria e perca seu caráter propositivo, recomendo: sempre que puder, apoie um(a) divulgador(a) científico(a). Empreste seu espaço em stories e feeds por aí afora e dê cartaz e prestígio aos que se dedicam a entrar nesse embate e trazer Ciência à vida das pessoas.

 

Toda força é valiosa e, assim como num cabo de guerra, não importa o lugar da corda que você está segurando: na derrota, todos vão à lama.

Comentários

  1. Excelente reflexão! E sabes que é tão difícil fazer as pessoas agirem depois que elas se acomodam nessa decisão da suposta "cautela", a não ação. Recentemente senti isso muito na pele, especialmente quando estava com covid. O resultado do negacionismo no meio em que eu estava é que para toda informação científica, havia uma "contra informação", e na dúvida, cada um fazia o que achava melhor... E eu passava por chata que ficava agourando a vida alheia 🤡 Infelizmente eu não vejo possibilidade de reversão desse quadro em tempo de melhorar o cenário.

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