Epidemia do Escracho e os Riscos do “Politicamente Incorreto”

De uns tempos pra cá, tenho procurado exercitar bastante um aprendizado que me alerta da diferença de significado entre as palavras “comum” e “normal”. Frequentemente, confundimos as duas. Ainda mais no País em que vivemos, onde os absurdos, embora comuns, não podem ser tidos como ocorrências normais. Vejo o “comum” como a frequência, enquanto que o “normal” depende do juízo de valor que fazemos a partir de nosso conteúdo moral.

Que nós brasileiros somos extrovertidos, brincamos com tudo, extraímos riso do choro, todo planeta sabe. Algum(a) historiador(a) poderia aplicar uma narrativa perfeita aqui, que combine com o espírito de superação dos diferentes povos e raças que hoje nos compõem como Nação. Desde o negro que sofreu (e sofre) discriminação por séculos e precisou encontrar uma razão de levar tudo adiante, com esperança, buscando alguma graça no ser e, como dizia Herbert Vianna em Selvagem: com “a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar”; até o italiano, que chegou no País a partir da 2ª metade do século XIX, em geral com “uma mão na frente e outra atrás”, mas ainda assim com seu jeito ímpar (quando comparado com a frieza europeia) de manter o bom humor, a confraternização em família, a fala em tom alto e usando as mãos, mesmo em dificuldades. Ser animado é do brasileiro. 

Extrair alguma alegria dos momentos difíceis é do brasileiro.

Hoje em dia, especialmente nos meios virtuais, essa nossa capacidade em brincar e “tirar onda” das adversidades é bastante conhecida pelo termo “zoeira”, ou “zueira”, "zuêra". Já virou até meme a expressão “the zueira never ends”, referindo-se ao fato de que, não importa quão ruim ou desagradável uma situação seja pra alguém: sempre dá pra arrancar algum riso ou “tirada de sarro” daquilo ali. No entanto, o que a princípio pode demonstrar alegria e espirituosidade, esconde por trás uma questão preocupante: o desbalanço entre “zueira” e “consciência política” faz com que o País, de modo geral, desvirtue um processo eleitoral que, em tese, nos encaminharia para uma sociedade melhor representada, mais atenta e mais capaz de seguir escrevendo nossa História para o rumo do progresso e do bem comum.

Paraense que sou, lembro com muita tristeza de um episódio ocorrido em 2016, envolvendo um então Deputado Federal, que, quando entrevistado durante sessão na Câmara, em Brasília, afirmou com todas as letras: “eu não devo satisfação a ninguém a não ser a mim mesmo”, referindo-se à votação de uma determinada matéria. E mais: quando perguntado se não achava que devia satisfação a seus eleitores, ainda emendou dizendo, “o mandato é meu, os eleitores quando elegem a gente dão uma procuração pra gente legislar, depois eles julgam se foi certo ou foi errado”.

A pergunta que fica é: como elegemos indivíduos com esse nível de despreparo sobre a posição que ocupa e com tamanho descompromisso público?

Parte da resposta pode estar na linha “zoeira” que o candidato assumiu desde os tempos de campanha: os materiais impressos, o linguajar, a estratégia… Ainda lembro como se fosse hoje mesmo do slogan “vou fazer muita onda em Brasília”, que fazia as pessoas nas ruas vibrarem com o ar escrachado do então candidato a uma das cadeiras no Congresso Nacional. Fim da história? Ele conseguiu, elegeu-se. E não por um, mas sim por QUATRO mandatos consecutivos. 16 longos anos.

Infelizmente, ele está longe de ser um dos únicos exemplos. Recentemente, tivemos outro caso que, no lugar de gerar revolta da grande parcela da população, reverberou um entusiasmo típico dos filmes de ação antes da batalha final entre herói e vilão. Tudo porque o político em questão usou as redes sociais para, por meio de um texto e de um vídeo, desafiar uma outra autoridade pública, policial, a vir prendê-lo se ele tiver “c#%$h@0” e coragem. Nos dias de hoje, infelizmente mais uma ocorrência “comum”. Porém, nunca “normal”.

O problema do "zueira never ends" é que quando a população, sem perceber qualquer gravidade por trás das gracinhas do “politicamente incorreto” aplica essa lógica para definir quem lhe representará nas cadeiras que definem o nosso destino, essa mesma população acaba por "dar vida" a figuras que se nutrem de arruaça, baixeza, escracho, escárnio, para, ao se transformarem nos "descoladões" da opinião pública, elegerem-se e passarem a se portar como se estivessem acima da Lei, da Ordem, do Regimento da Casa que representam, dos bons modos, de tudo. Não só ignoram como depõem contra a respeitabilidade das instituições que representam. Sem perceber, reduzem ainda mais a já combalida confiabilidade que a população tem (tem?) nas instituições públicas.

Com a zoeira ocupando as mentes e as mãos que alimentam as redes sociais, acabamos por atirar o decoro e a confiabilidade das instituições na lata do lixo.

Elegem-se representantes (ou como disse o ex-deputado, "entregamos procuração" àqueles) que priorizam o escárnio em vez do trabalho sério; usam ferramentas de comunicação para provocar, em vez de para prestar contas de seu mandato; atuam como se fossem funcionários de uma empresa sem chefe, onde fazem o que querem, sem consequências, nem sequer uma chamada de atenção de seus superiores, que na prática, no contexto dos cargos eletivos que ocupam, somos nós, cidadãos, os seus chefes. E a quem eles, em vez de nos darem satisfação, se ocupam em nos encher de vergonha.

No fim das contas, criamos "monstros" para nos (des)governar. Gente que, pela postura “zueira”, no máximo seria um fanfarrão em seus círculos de convivência. Mas, inflados pela “zueira” que alimentam na população, se elegem, viram deuses, intocáveis, acima da Lei. Quando na verdade só são arruaceiros, para cuja lógica empresarial, se aplicada fosse na Administração Pública, resultaria em demissão sumária, considerando a péssima relação investimento x retorno.

A expressão mais famosa, que também tem como "parente" a "quem tem limite é município!". Até que ponto os prejuízos ficam só na chateação temporária de alguém?

O ponto aqui é: nós mesmos emergimos essa gente para nos representar.

E são vários os prejuízos: no campo financeiro, em razão do alto custo parlamentar pra pouco/nenhum resultado; no campo institucional, porquanto mancham e desonram as instituições que representam (talvez não percebam ou não dêem a mínima pra isso, claro!), e outro, tão ruim quanto: a frequência de comportamentos ridículos, reproduzida sistematicamente ao longo do tempo, faz com que gente com propósito, empenho, vontade de realizar entregas de qualidade pra população se AFASTE da Política.
Justo a Política, que nos direciona a vida.

Por essas e outras temos mais é que entender quando as pessoas se dizem frustradas com a Política, ou nunca sequer realmente quiseram depositar alguma confiança nela.
Duvidou? Basta olhar nosso Legislativo, quaisquer das esferas. (Aliás, nós temos lembrança sobre em quem votamos nas últimas Eleições?!?)

Baixíssima ou nenhuma transparência, zero compreensão de “mandato coletivo”, encastelamento, sumiço, votos a favor de interesses oligárquicos, em detrimento do interesse coletivo (lembremo-nos do caso da climatização dos ônibus em Belém!), ou quando aparecem, é para alimentar a zoeira e a beligerância que os fizeram famosos. Tudo para fortalecer a “marca pessoal” que os colocou ali.

Vergonha!

A verdade é que, enquanto o tempo passava, os maus cumpriam com sucesso a missão de afugentar os bons de ocuparem os lugares de decisão. E, até o presente momento, parece ter “ficado por isso mesmo”, já que os bons seguem em silêncio, como já se preocupara lá atrás o grande Martin Luther King.

Virou comum. Mas também virará normal?

Até quando?



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